O calor marcou o início do Rock in Rio Lisboa 2010. Calor do sol, mas igualmente calor gerado pelas 81 mil almas que encheram o Parque da Bela Vista e pelas mulheres que tomaram conta do primeiro dia de espectáculos.
{jathumbnail off}De facto, Mariza, Ivete Sangalo e Shakira prefiguravam-se como as principais atracções da jornada inaugural e quiseram mostrar trabalho e credenciais, com resultados práticos bem diferentes.
Num ambiente de eufórico merchandising – quem conhece o Rock in Rio, conhece o sentimento de interminável arraial, de feira de rua à beira do descontrolo –, não era fácil à partida para qualquer artista desviar a atenção dos presentes para a música, tantos eram os atractivos (os anéis luminosos reinavam em quantidade, mas havia ainda lugar para os sofás e guitarras insufláveis, óculos de sol oficiais, visitas à montanha russa, ao Espaço Fashion e a inúmeras capelas que cintilavam).
Só um fenómeno da natureza o poderia conseguir e ele chegou com Ivete Sangalo, o furacão da Baía. A brasileira pode não estar ainda “gostosa” após o nascimento do seu filho (assim o garantiu a um fã mais atrevido que a interpelou a partir das primeiras filas), mas certamente que para lá caminha, tal é a correria que imprime aos seus espectáculos.
Antes do espectáculo, Ivete Sangalo garantiu aos jornalistas que tem feito um caminho seguro em Portugal e que vinha para agitar as massas: “a minha música tem apelo de festa e joga bem com o espírito dos portugueses. É uma mistura explosiva!”. A brasileira demonstrou o seu amor a Portugal e aos portugueses para lá de quaisquer reservas. Afirmou, até, que torceria pela selecção portuguesa no Mundial de futebol, se a equipa canarinha fosse eliminada. Ficou, em paralelo, a promessa da gravação de um DVD em solo luso (na sequência do que está planeado para o Madison Square Garden).
Em palco, Ivete Sangalo esteve igual a si mesma. Ou seja, irrequieta. Todo o espectáculo está orientado para um único objectivo: pôr o público na estratosfera. A agitação prejudica, em momentos, a sintonia musical com quem ouve, porém tudo é ultrapassado pelo furioso ritmo que não abranda e convida a dançar até à última nota, à última gota de suor. A presença de muitos brasileiros, de olhos postos no Palco Mundo, ajudou a deflagrar a festa, assim como temas clássicos, entre os quais Sorte Grande e o seu mítico refrão que faz todo o sentido na poeira dos festivais. Em destaque estiveram também alguns temas do último álbum de Ivete, ainda pouco conhecido entre nós (intitulado Pode Entrar e lançado em 2009). Referência especial, neste capítulo, para a brincadeira orientalista Cadê Dalila, sem esquecer Oba Oba e Na Base do Beijo. Entre o trio de mulheres que dominaram o 1º dia do Rock in Rio, Ivete Sangalo acabou por reinar por aclamação, comprovando que consegue lidar bem com aquilo que dela se espera: genica.
Mariza quer ser animal para diferentes palcos
Mariza nunca escondeu que gostava de actuar no Rock in Rio. Este ano, a organização ouviu-a e não perdeu a oportunidade de enviar convite. Os nervos não atraiçoaram, até porque sabia ter um fantástico trunfo na manga. “Vou cantar para a gente da minha terra”, anunciou Mariza em conferência de imprensa, tomando emprestadas palavras que a celebrizaram no mundo musical. Antes de se deslocar a Xangai, onde actuará enquanto símbolo nacional no pavilhão português da Exposição Mundial 2010, Mariza fez questão de se revelar no maior dos palcos montados entre nós: “adoro cantar em Portugal e não tenho tido a oportunidade de o fazer tantas vezes quanto o gostaria”. No set da fadista viu-se e ouviu-se pouco de fado, no sentido mais restrito do termo. Desfilaram faixas bem conhecidas, como Rosa Branca, saída do disco Terra, trabalho que mostra como Mariza ambiciona fugir às etiquetas e prateleiras de género. Aqui e acolá, um relance para o passado, através de músicas como Feira de Castro (interessante ouvir reminiscências do folclore português a ecoar por entre ouvidos pouco habituados a tais sonoridades). Tito Paris deu uma perninha em Maria Lisboa. Os dois momentos mais significativos do espectáculo foram, porém, Ó Gente da Minha Terra – música entoada em uníssono e a reclamar um legítimo arrepio na espinha nacional –, e a versão de Come as You Are, dos Nirvana, que deixou meio mundo perplexo e sublinha a actual linha condutora para a carreira de Mariza: quebrar todos os espartilhos.
Antes da entrada em palco de Shakira, John Mayer foi lançado às feras, quiçá prejudicado por um cartaz que o distinguia como um outsider, com um público igualmente à parte. O norte-americano prossegue a sua carreira de evoluções estilísticas (que o levaram dos climas intimistas à R&B e à pop mais convencional), apresentando-se em Lisboa com um perfil de voluntarioso bluesman. Nada faltou, os trejeitos solistas de Clapton, as Fender, o ar negligente e carnal. Os fãs (e em particular as fãs) aprovaram. No entanto, ao vivo o som produzido por John Mayer e companhia acrescenta muito pouco, é como a reprodução em larga escala de uma audição caseira, sem inflexões e desvios de oportunidade, muito formal e previsível. Ouviram-se, sem dúvida, os temas que consagram Mayer como criador de música emblemática e viciante (Waiting on the World to Change, Who Says, Perfectly Lonely, Crossroads, Belief), mas o espaço para o improviso e para espíritos rebeldes parecia ter sido clinicamente deixado nos bastidores. A capacidade de Mayer para criar hinos agradáveis e que ficam no ouvido é indesmentível, mas ao vivo tudo parece ficar um pouco aquém de… como se o ultimo impulso, o último grito das entranhas o fizesse ultrapassar a fronteira que o conserva na seriedade própria das tabelas de hits. Um workshop com Joe Cocker – quem sabe – poderá resolver o problema a contento do jovem artista e da sua legião de fãs.
Shakira avançou a toda a brida com a sua famosa dança do ventre, por entre os acordes de Ojos Asi. Desde logo se percebeu que a música, os suportes multimédia, as coreografias e demais componentes do espectáculo iriam convergir para as ancas da colombiana (a merecerem, não tarda nada, uma candidatura ao Rock & Roll Hall of Fame). Shakira foi graciosa para o público (fez questão de falar em português) e trouxe consigo uma locomotiva sonora que sabe carregar no acento latino. Não faltaram, também, as canções de referência, como Whenever Wherever, Gypsy, La Tortura, She Wolf ou Hips Don’t Lie. Ficou, ainda assim, a incómoda sensação de que a colombiana poderia dar mais de si e concentrar-se na revelação dos seus atributos puramente musicais.
Uma palavra final, neste 1º dia do Rock in Rio, para o entrosamento lusófono conseguido por Boss AC e os seus convidados Yuri da Cunha e Toni Garrido. O angolano Yuri da Cunha ofereceu, dentro desta parceria transcontinental, a riqueza de múltiplos estilos (rumba, semba, kizomba) e a enorme alegria de quem dança para viver. Toni Garrido temperou com reggae, funk e um samba malandro e Boss AC deu o mote com canções já interiorizadas pelas gerações urbanas, entre as quais Rimas de Saudade, Boa Vibe, Princesa (Beija-me Outra Vez) ou Quieres Dinero. Tudo isto concluiu Boss AC, com muito trabalho de cumplicidade mas sem colocar mácula no seu impecável fato branco.{jathumbnail}